domingo, 27 de outubro de 2013

O perdão

Não me conseguia lembrar da última vez que ali havia entrado, já teria passado certamente muito tempo, mas não o suficiente como vim a perceber pouco tempo depois. Estava com uma amiga, daquelas amizades que resistem ao tempo e às circunstâncias da vida. Ela sentia-se como um peixe na água, aquele era o seu habitat, mas para mim nem as lembranças das tardes e noites lá passadas me faziam sentir minimamente à vontade. Sentamo-nos numa mesa ao fundo do café, pela primeira vez entrava no café que outrora havia sido ''o nosso café'' e não conhecia quem me estava a atender. R falou para quem nos viera atender com um à vontade que me deu de imediato a perceber que ela o conhecia. Eu, como qualquer cliente que está apenas de passagem, contrastei com a familiaridade com que ela fez o seu pedido e num tom de voz formal disse apenas: - É um café curto, por favor. R olhou para mim de forma desaprovadora e não perdeu a oportunidade de comentar: - Longe vão os tempos em que aqui chegavas e quem quer que estivesse a trabalhar sabia que querias um café curto. Não respondi ao seu comentário, nada havia para dizer. A verdade era essa, mas nem eu nem ninguém podia afirmar com certeza ter sido pior assim. Nunca ninguém disse que manter os mesmos hábitos ao longo dos anos era saudável. Estivemos ali cerca de uma hora, R decidiu ficar por lá, mas para mim já se começava a tornar aborrecido. Despedi-me de R e fui em direcção à porta, quando me estava a preparar para sair do café, vestindo o casaco que havia comprado para os dias de chuva, senti uma mão no meu braço. Virei-me de imediato, julgando ser R, afinal estava enganada. Ele continuava exactamente igual, como se os anos não tivessem passado e os dias não tivessem contado. O mesmo sorriso, a mesma barba por aparar, o mesmo brilho nos seus olhos que desta vez quase que ia jurar que estavam verdes. Tinha menos confiança no olhar, este parecia mais claro, como se estivesse repleto de água por demasiado tempo. A àgua corrói, ele deveria saber disso. - Duvidei que fosses mesmo tu L... , disse quando fixou o seu olhar no meu e percebeu que sim, estava mesmo na minha presença. - Sou eu sim, com licença. - disse de forma fria, direccionando o meu olhar novamente para a porta e continuando a andar. As minhas mãos tinham gelado e o meu coração batia acelerado. Não conseguia perceber porquê. Julguei que o havia perdoado ao longo de todo este tempo, e ali estava eu, incapaz de manter um mero diálogo ocasional. Lá fora chuviscava, não tinha trazido guarda-chuva, decidi pôr o carapuço enquanto me dirigia para o carro. O passo era lento, as gotas escassas não o exigiam apressado e o meu coração não o permitia com medo que eu mesma sufocasse. De repente, ouvi passos atrás de mim e parei. - L! - era ele. - J, por favor, o que fazes a correr atrás de mim? , - Faço aquilo que me culpei de não ter feito ao longo dos anos... - disse com o olhar fixo em mim - Não faças isto J, vai-te embora. - disse eu em tom de suplício. - Quase nem te conhecia L, pintaste o cabelo com uma cor tão escura e eu que te tenho procurado em todas as mulheres de cabelos loiros com quem me cruzo na rua... - disse J mantendo sempre o seu olhar fixo em mim. - As pessoas mudam J, e por isso mesmo não fazes nada aqui, mais não somos que dois desconhecidos que outrora se conheceram. - disse eu devagar, como se tivesse imaginado o momento em que pudesse dizer aquilo, vezes e vezes sem conta. - Ainda não me conseguiste perdoar L? - disse J - Acho que sim J, agora que estás aqui à minha frente como se estivesses arrependido de todas as vezes em que me trocaste por pedaços de noites com mulheres mal amadas, percebo que te perdoei. Não me perdoo é a mim. Não há perdão para uma mulher que se deixa enganar da forma mais ridícula e humilhante. Não há perdão para a mulher que se afasta por achar que todos no café sabem a sua história. Não há perdão para a mulher que deixa de ser quem é e pinta os seus cabelos de preto para fugir a uma identidade. Não há perdão para mim, entendes? Entrei no carro, fiz inversão de marcha e decidi conduzir, sem destino, para um lugar realmente desconhecido.