terça-feira, 14 de abril de 2015

A amarga loucura

Há dias. Dias em que gostávamos de explicar mas nem nós próprios conseguimos compreender. Não se explica o que não tem explicação, da mesma maneira que não se rega uma planta que já morreu. Não ter explicação é a maior de todas as explicações. Depois disto, ninguém ousa questionar mais nada. E foi assim que o silêncio nos matou, perante a ausência de explicações. Eu disse-te que não havia explicação, tu deixaste que o silêncio falasse por nós. Não se explica o que não se entende. Toda esta insanidade que me corre nas veias é inexplicável, e tu preferes o silêncio aos meus devaneios loucos. Talvez seja melhor assim, não me deixes falar, não te deixes consumir por este jogo de loucura. Não sei como vim aqui parar, acho que não foram os meus pés que me trouxeram até aqui, foi o sangue que me corre nas veias. Mas não adianta procurar culpados para uma loucura que não tem explicação. Continua aí, no silêncio. Não dês voz à minha loucura. Porque eu amo-te e a minha loucura já me matou, matou-me a mim e matou o nosso amor... E agora, silêncio. LL

terça-feira, 7 de abril de 2015

Os domingos

Era um Domingo, mais um Domingo sem encanto. Para ela, aquele dia da semana deveria ser riscado do calendário. Era um tormento que chegasse o dia que outrora fora o dia mais feliz das suas semanas. Associava o Domingo à cor branca, trouxera-lhe tantas vezes paz e felicidade. Hoje não gostava de olhar para ele. Dizem que o Domingo é o dia da família, talvez por isso lhe custasse encarar este novo Domingo, pintado de uma outra cor qualquer, que se recusava a saber qual. Sentia-se mais uma a entrar nas estatísticas de filhos de pais divorciados, e por mais que já o tivesse aceite, este novo quadro não se encaixava nos seus padrões de uma família de Domingo. Em tempos que o tempo levou, fora uma menina sortuda criada no seio de uma família feliz. Só depois se mudaram os tempos, se inverteram as prioridades, se desvendaram personalidades e o reino encantado da sua infância caiu, reduzido a cacos, como se nunca tivesse passado de uma peça de teatro que chegara ao fim. Foi exactamente isso que ela lhe explicou quando ele lhe perguntou porque razão ela não gostava deste dia. Ele vinha de uma família de Domingo, pensou ela, talvez por isso tivesse precisado de uma explicação, neste que era mais um Domingo pintado de tons escuros no quadro da sua semana. No fim da sua explicação ele acenou com a cabeça, colocou a sua mão sobre a dela e disse que também ele nunca fora adepto deste dia. Ela perguntou-lhe o porquê e ele, direcionando o olhar num ponto longínquo, explicou-lhe que desde que o seu pai passara por uma fase complicada em que se deixara levar pelo vício do jogo, os Domingos eram dia para se juntarem em volta da mesma mesa atirando culpas e discutindo o que se perdeu. De forma diferente, talvez ele também não viesse de uma família de Domingo feliz, pensou ela. Ambos não sabiam o que tinha acontecido desde que cresceram e se tornaram adultos. Ou a vida nos pregou uma rasteira, ou deixaram de nos atirar poeira para os olhos, foi essa a observação dele, depois de uns momentos de silêncio. Ela explicou-lhe que apesar de tudo pelo qual passaram, admirava a família dele. Admirava a sua mãe que não desistiu do seu pai, admirava o seu pai que nunca chegou a desistir dele mesmo e admirava-o a ele, que em nenhum momento os culpou. Para ela, isso era uma família de Domingo, ainda que nem sempre fosse um Domingo feliz, todos eles se recusaram a abandonar aquela mesa. A união faz uma familia, era assim que ela pensava. Ele sorriu e disse que no fundo a invejava a ela, porque apesar de ter sido em tempos que já lá vão, se notava nos seus olhos que havia vivido verdadeiros Domingos felizes, o que só pode acontecer numa família onde se partilhe amor. (...) Cinco anos depois casaram, para esta união ele contribuiu com a sua preserverança,a preserverança que outrora havia feito da família dele uma família unida. Ela contribuiu com o amor, o amor que fizera dos seus Doningos de infância dias felizes. E foi assim que os Domingos dela voltaram a ser brancos, provando que nada nos impede de conquistarmos por nos próprios aquilo que a vida nos roubou.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Desafios do coração

Não sei como te escrever, faltam-me as palavras e não encontro o jeito de te chegar ao coração. Talvez porque não te conheço bem, o que em nada me orgulha. Sabes de cor cada traço do meu rosto e tens a palavra certa para cada variação de humor minha. E no entanto, eu não te conheço. Dizem eles que gostaste muito de mim, acredito que hoje já nada sintas, mais até, aceito-o. Não teria porque não o aceitar, aprendi ao longo dos anos a exercitar a minha coerência e ser coerente é aceitar que não posso prender-te a mim só porque sim. Só porque és o ombro amigo quando eu preciso, me levantas o ego quando desanimo ou me amparas as quedas quando tropeço. Sei que não acreditas quando te digo que se eu fosse dona do meu coração pedir-lhe-ia que te cedesse um lugar. Mas continuo a dizê-lo porque é a única verdade que me orgulho de te dizer. Sei que não te conheço porque nunca te quis conhecer, não te conheço porque tens um coração que não te permitiu desafiar-me. Logo eu, que sempre gostei de um bom desafio. Perguntas-lhe a eles o que tem ele que tu não tens, mas formulas mal a pergunta. Ele é que não tem, não tem o teu coração. Foi então, e por isso mesmo, que me desafiou. Não perco um bom desafio, devias saber disso. Porque tu sabes tudo sobre mim. Sabes que adoro tulipas, que leio José Rodrigues dos Santos antes de adormecer, que gosto de cães mas não gosto de gatos. Talvez ele até nem saiba tudo isso, mas soube despertar a minha atenção. Soube a fórmula exacta para me cativar. Tu nunca me cativaste e, no entanto, sempre olhei para ti como um modelo de genro ideal para apresentar ao meu pai. Acho que o meu pai ia gostar de ti, o meu pai sempre preferiu os bons corações. Eu não, acho que sempre rejeitei a ideia de ter alguém como tu a meu lado, talvez por medo, medo de não estar à altura. É isso, é exactamente isso que quero que saibas. Não te sintas nunca mal, não te negligenciei nunca em virtude de uma melhor opção, foi medo apenas. Medo de não estar à altura. Medo de prender-te a mim e depois sair por ai, em busca de um bom desafio. Logo eu, que sempre gostei de desafios.

sexta-feira, 27 de março de 2015

O circo

Aquele mundo sempre a fascinara. Era o mundo que tinha povoado os seus sonhos de infância. As cores faziam-na lembrar a felicidade e ela sempre acreditara que a partir do momento que ali entrassem, as pessoas só podiam ser felizes. Pelo menos enquanto durasse aquele espetáculo. Era um espetáculo de magia e cor, sorrisos e ternura. Se houvesse felicidade, ela só poderia estar ali, dentro daquela tenda velha, desgastada pela chuva e pelos anos de estrada, e ainda assim tão viva. Foi por isso que naquele dia foi ao circo. Ela, mais do que ninguém, precisava daquela felicidade, de se sentir viva. Já à muito que os tons cinza da vida lhe cobriam os olhos. Foi sozinha, dizem por aí que já não há tempo nem dinheiro para estas coisas. Achava injusto, não há dinheiro que pague esta arte, tão pouco valorizada. Logo ali, que as pessoas eram tão felizes. Entrou na tenda e deixou-se levar pelo espetáculo. Sorria muito, bateu palmas, foi feliz. Foi durante a estadia do circo na cidade que ela o conheceu. Ele, o palhaço. Ele contou-lhe os encantos da sua profissão, o quanto brilham os seus olhos quando faz rir uma plateia. Contou-lhe também os seus maiores segredos, também ele tinha dias maus. Daqueles dias em que a vida nos cansa, nos deita a baixo, tal como qualquer outra pessoa. Mas o seu coração era tão grande que até mesmo nos dias em que chorava por dentro, conseguia fazer os outros rir. Ele fazia-a rir, não pelo seu lado cómico, mas pela felicidade que ela sentia quando estava com ele. Mas ele, melhor do que qualquer outra pessoa, sabia que não se podia apaixonar por aquela mulher. Em breve o circo partia e uma das regras de vida de qualquer artista de estrada é mesmo essa, não se apaixonar. Ele é uma pessoa livre, criar raízes é um veneno na sua profissão. Mas nestas coisas do amor, nunca a razão falou mais alto. E o provável aconteceu, apaixonaram-se. Amaram-se aquela e todas as noites, sempre em contra-relógio. O dia da despedida estava marcado e cada minuto se fazia contar. No dia em que o circo abandonaria a cidade, ela foi ter com ele: -Leva-me contigo - disse ela. -Não posso fazer isso. -Eu sei que não era isto que estava planeado, ambos sabíamos que este dia ia chegar, mas eu quero ir contigo. Quero ser feliz, livre como tu, como os ilusionistas, os trapezistas, os domadores de leões e até a senhora da bilheteira. -Não és mulher para esta vida. Este não é o teu mundo. Nunca quererias dar esse desgosto ao teu pai. -O meu pai quer que eu seja feliz. -Com um palhaço? Que de casa te dá um camião, que te faz andar pelo mundo fora sem quatro paredes que te abriguem? Que não será ninguém para te proteger das dificuldades que passamos quando montamos a tenda e ninguém compra bilhetes? -Eu quero viver nesse mundo, ao teu lado. A felicidade descobri-a contigo. A liberdade que eu preciso vou encontra-la a teu lado, estrada fora. -Não é um palhaço que o teu pai quer para a sua filha. Ele quer um homem engravatado, com um diploma na mala e um Mercedes oferecido pelos pais. Eu não sou ninguém. -Não digas isso! Tu foste a única pessoa que me fez sentir viva, a única pessoa por quem me consegui apaixonar desde o primeiro instante. Tu fazes-me feliz. Eu não sou isto, não sou estas roupas caras que visto, o curso universitário que estou a tirar, as férias que passo na praia ou o carro que tenho à porta. A minha felicidade vou encontrá-la todas as manhãs quando acordar ao teu lado, quando montar a tenda para fazer mais pessoas felizes, quando conhecer o mundo, o verdadeiro mundo. -Não te posso fazer isto, não tenho nada para te oferecer. -Tu sabes que eu não preciso de nada, ao longo destas duas semanas tu percebeste que esta vida que tenho me abafa, me sufoca. Eu preciso de liberdade, de viver um dia de cada vez, sem planos nem obrigações sociais. Apenas viver, com amor. -Um dia vais querer ter filhos e não vai ser esta a vida que lhes vais querer dar. Vais querer ter uma casa onde eles possam ter um quarto de brinquedos, um jardim grande, que sejam estudados. Tal como os teus pais quiseram para ti. Esse é o teu mundo. -Uma família constrói-se com amor e um diploma universitário não fará dos meus filhos pessoas mais ou menos íntegras. Eu amo-te e quero que me leves desta cidade, contigo. -E se um dia não tivermos que comer? Vais amar-me mesmo assim? -Vou amar-te todos os dias da minha vida. No mundo onde eu vivo as pessoas não são felizes. Presas à vida que a sociedade e a família lhes impõe. -No dia em que entraste no circo eu reparei em ti, és uma senhora vistosa. As roupas, as joias, a postura elegante. Mas vi a tristeza no teu olhar. Os teus olhos tão vazios. Nunca percebi como se pode ter tudo e não ser feliz. -Precisamente por se ter tudo é que não se é feliz. Estamos presos a isso, impedidos de viver. Por isso mesmo, nunca te pediria que ficasses, nem que aceitasses este meu mundo. Quero que sejas feliz. Mas quero que sejas feliz comigo. Os dois, por essa estrada fora. Ele olhou para ela, lágrimas escorriam dos seus olhos, olhava para ela completamente apaixonado. Ela era diferente das pessoas do seu mundo. E disso, ele tinha a certeza. Foi então que com todo o amor que lhe tinha, a olhou nos olhos e lhe disse: -És a mais bonita mulher que já alguma vez vi. E nunca pensei encontrar alguém tão fascinante por fora como por dentro. Todas as noites te amei como se fosse a última vez e tenho o teu cheiro em cada entranha do meu corpo. Nunca pensei que se pudesse amar assim alguém que não se conhece. Mas amo-te mais do que podes imaginar e não serei capaz de te mostrar o lado triste que tem o circo. Aqueles dias em que passamos fome, em que ninguém vem assistir ao espetáculo, em que uma tempestade nos destrói a tenda ou o dinheiro não chega para o gasóleo. Guarda o bom, o fantástico, as cores, os sorrisos. É um dia, quando casares com um desses engravatados de diploma na mala, guarda o sorriso do teu pai e o meu. Que sorrirei por ti, mesmo que esteja do outro lado do mundo. Porque terás a vida que mereces. Deixa o espírito livre, por mais que o corpo esteja preso nesse mundo. Tu saberás ser feliz, eu sei que sim. E o circo partiu, deixando para trás o corpo preso de uma mulher cujo coração estava naquele camião cintilante.
Não estava à tua espera. Finalmente me havia conformado com o que aos meus olhos se havia tornado uma certeza, homem nenhum consegue amar uma mulher assim. "Homens precisam de se sentir amados", comentava uma amiga de longa data numa das nossas muitas conversas de café. "A tua segurança em ti mesma, a liberdade que tanto prezas, o facto de quereres ser tu a controlar tudo na tua vida, traz insegurança ao homem que estiver a teu lado." Comecei a pensar nisso e nas particularidades que faziam de mim uma mulher difícil. Sempre me considerei uma mulher simples de perceber, mas entendia agora que essa minha simplicidade causava todo um mapa complexo aos olhos de qualquer homem. Não tinha muito orgulho no meu passado, não fui a mulher que um dia quis ser. E foi por isso que me direcionei em sentido contrário e comecei a amar-me mais a cada dia que passa. Troquei a rota, inverti posições e prioridades. Comecei a ser a minha prioridade sempre que acordo de manhã e repito a mesma rotina. Tomo as vitaminas, calço as sapatilhas e vou correr, o dia segue, tenho uma lista de coisas a fazer e não aceito que nenhuma delas se faça esperar. No meu dia tenho que encaixar tempo para os amigos, seja para um café ou uma conversa nas redes sociais. Tenho que ter tempo para a família, o meu bem mais precioso. Tenho que tomar conta da minha vida, dar uma ajeitadela na vida dos outros, visitar os sites que sigo na internet e ainda arranjar um tempo para ir à aula de pilates ao fim do dia. No meio destes dias consigo planear uma viagem, adoro passear em boa companhia, mas sei apreciar a minha, por isso às vezes saio por aí, comigo mesma. E sou feliz. Não tenho paciência para justificações desnecessárias e contínuas, pormenores aborrecidos e perfeitamente descartáveis sobre o quotidiano. Acho que isso muito contribui para que o casal chegue ao ponto E, E de enfadonho, em que já conta tudo e mais alguma coisa. Tudo o que não interessa e mais alguma coisa desnecessária que ainda se lembra de acrescentar. No entanto, gosto e reconheço a importância de uma conversa agradável ao fim do dia em que conto o que andei a fazer, o que conheci, aquilo que aprendi e o dinheiro que poupei para uma próxima viagem. E o melhor disto tudo, é que ele entende-me. Não cobra muito de mim. Habituou-se à complexidade de mulher que escolheu amar. No início pensei que se tratava apenas de um fascínio pela mulher independente e que ainda assim tem tempo para fazer a sua sobremesa preferida. Depois percebi que não, ele gosta de mim e é por isso que me dá asas para voar. Não me prende mas nunca me falha. Não o prendo mas nunca lhe falhei. Diz ele que nunca pensou aceitar uma mulher assim, digo eu que nunca pensei encontrar alguém tão seguro de si ao ponto de me deixar ser eu mesma. Em troca dou-lhe o melhor de mim e aceito-o como ele é, tal como ele faz comigo. Não invadimos o espaço um do outro, mas sabemos que o espaço de um é o espaço de outro. Não nos preocupamos em ser um modelo de casal, mas olhamos para nós com orgulho. Ele dá-me liberdade para ser feliz, ama-me sem me roubar um lado que não volta mais, a minha juventude. Que outro homem me poderia amar assim? Que outro homem aceitaria uma mulher assim? Acho que amar é isto mesmo, aceitar a mulher que temos ao nosso lado, estimula-la, ter orgulho nela, compreender as suas necessidades, apoiá-la. E nisso, eu sinto-me a mulher mais amada deste mundo. Agora vou dormir, que amanhã a vida segue e ao fim do dia ainda tenho que ter tempo para te contar o que aprendi enquanto adormeço livre mas segura nos teus braços.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Papá

Acordava, ainda adormecida O silêncio Numa causa onde outrora pairou a euforia A casa fria Faltava calor humano. Tinha que despertar Não por mim Mas por ele Ele é a minha família Somos só nós Nesta casa construída para cinco Sinto um peso O peso de querer fazê-lo feliz Como se fosse possível dar-lhe o que perdeu O seu sorriso esconde a dor Não é fácil perder a família aos cinquenta Nem aos vinte e um, pensei Mas isso ele já não precisa de saber E sorrio de cada vez que ele chega atrasado para jantar Como se não importasse o tempo que espero Como se a solidão não me invadisse Como se as malas e os relógios me fizessem feliz Ele acredita que sim E eu quero que ele continue a acreditar Perdi o meu lado de menina Tive que descobrir o meu lado de mulher Ela partiu Foi procurar a felicidade Longe de nós Ouvir o seu nome magoa-te Dizes sempre que sou parecida a ti Evitando prolongar a sua presença nesta casa Esqueces-te de trocar a lâmpada Eu chateio-me Como ela fazia E tu sorris Porque no fundo eu sou o que resta dela E por mais que não a aceites Dói de mais a sua partida E eu continuo a fingir Fingindo que o dinheiro compra o calor desta casa Sabes que mais? Não compra. Preferia ter menos comida na mesa E mais gente. Como antigamente, lembras-te? Daqui a uns dias faço vinte e dois anos Isso assusta-te Tens medo que voe Prometo que não te deixarei Somos uma família Os dois Não me importo de fingir a vida toda Não me importo de esperar por ti Não me importo com o silêncio Prometo ficar. Por ti, por mim, por nós És o homem da minha vida, papá 💛

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Prometo amar-te

Lembro-me bem do dia em que te conheci. Estava atrasada, estacionei o carro apressadamente e tentava acelerar os passos. Mais uma vez em contra relógio. Lembro-me que alcancei o piso das chegadas e respirei fundo. Tinha que aprender de uma vez por todas a controlar o tempo para não me estar sempre a descontrolar a mim, pensei. Quando os meus olhos finalmente alcançaram o grande ecrã, percebi que de nada me havia valido tanto esforço, o voo deles tinha atrasado duas horas. Decididamente eu e os horários tinhamos assuntos pendentes, não havia outra explicação. Decidi então ir tomar um café ali mesmo, não fosse o tempo jogar novamente contra mim. Sentei-me numa mesa que me permitisse ver o grande ecrã, queria ter a certeza que quando o avião deles aterrasse eu estaria mesmo em frente à porta de desembarque para lhes dar um abraço. Tomava um café curto, enquanto olhava em volta, tentando abstrair-me. Foi aí que te vi. O teu porte altivo, o teu olhar sério e a tua pele escura chamaram a minha atenção. De vez em quando perco-me a olhar para alguém enquanto lhe atribuo uma vida criada na minha imaginação. Contigo foi diferente, não te estava a tentar criar uma história, apenas tinhas chamado a minha atenção de forma indecifrável. Caí de repente na realidade e decidi ir fumar um cigarro. Enquanto fumava pensei no estranho que era aquele homem completamente desconhecido ter chamado a minha atenção, logo eu que depois de ter vivido o maior de todos os fracassos começara a viver mergulhada na minha solidão. Foi aí que tu chegaste e interrompeste os meus pensamentos. Naquele momento fiquei apreensiva, mas a conversa fluiu tão naturalmente que em pouco tempo acho que ambos nos esquecemos que nos haviamos acabado de conhecer. Lembro-me muitas vezes daquele dia, sabes? Tenho a certeza que naquele dia me pareceste muito diferente do homem que hoje tenho a meu lado. Hoje, seria incapaz de te imaginar a abordar-me num aeroporto. Logo eu que gosto de pintar o cabelo de vermelho e fumar, quer dizer, gostava. Sabes que voltei a ter os cabelos castanhos por ti, não sabes? Também deixei de fumar, nunca gostei da forma desaprovadora com que olhavas para mim quando eu acendia o cigarro. Somos tão diferentes, acho que foi essa diferença que nos uniu. Tu um homem de armas, acabado de chegar de uma missão no Afeganistão, cujo maior propósito era salvar vidas e honrar a pátria. Eu uma sonhadora, completamente distraída, sempre cheia de ideias e planos e que ainda acredita que a justiça se deve fazer sem guerras nem armas. Quando nos conhecemos eu não tinha a percepção de quem tu realmente eras. Tu és um herói. És um herói para os soldados que comandas, um herói para a tua família e um herói para mim também. Não é fácil ser a mulher que te acompanha. Para te acompanhar, sabes quantas vezes me esqueço de quem eu sou? Para ser sincera, de vez em quando apetece-me perder novamente a postura, andar em contra relógio e fumar um cigarro com uma garrafa de champanhe na mão, descalça, correndo pela areia da praia. Mas não o faço, porque no dia em que aceitei ficar contigo eu sabia que eras um herói. Não é fácil amar um herói, às vezes gostava que despisses essa farda e fosses tu. Às vezes gostava que te libertasses desse dever para com a pátria. Eu sei que não o farás, apesar disso tu sabes porque reparaste em mim naquele dia, da mesma forma que eu mais tarde percebi porque me havias chamado à atenção. Eu representei-te a liberdade, o sonho, era isso que faltava em ti. Tu representaste-me a realidade, que eu evitava em mim. No dia do nosso casamento sei que estarei a dizer sim ao facto de ter que te dividir com a pátria. Provavelmente serei uma daquelas mulheres que aguarda em casa, com o coração nas mãos, o fim de mais uma missão. Não era assim que me imaginava, uma mulher com os pés tão assentes na terra, com uma postura intocável, a dividir o seu herói com um quartel, ou melhor, toda a pátria. Mas fá-lo-ei, da mesma forma que cedi com os cabelos vermelhos, com os cigarros e com tantos sonhos. Porque ambos sabemos que um de nós tem que ceder. Tu não, porque tu és um herói. Resta-me dizer-te que prometo amar-te em cada regresso a casa. Prometo amar-te em cada ausência tua, JS. *