quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Finalmente nevava

Quando o telefone tocou estava prestes a adormecer. Lá fora a neve caia silenciosamente e eu, aninhada em pensamentos, dei por mim a recordar o dia em que saíste de casa com um nevão só para me dizer que eu tinha conseguido, um Deus qualquer tinha ouvido os meus insistentes pedidos. Finalmente nevava. Entramos no jipe e eu perguntei-te pelas luvas, respondeste confuso: Não trouxe, mas porquê? Disse-te sorridente: Vamos fazer um boneco de neve! Flashes daquela noite invadiam os meus pensamentos, aquele era o tempo de ser feliz. Não compreendia, mas aceitava agora mais facilmente que esse tempo fosse conjugado no passado. Por isso mesmo já nada esperava, muito menos a tua chamada nesta fria noite de Natal. Não sabia o que dizer, desejar-te um Feliz Natal já não soaria bem e com o tempo perdi o jeito próprio de falar contigo, de te chegar ao coração. Perguntei-te como tinhas o meu número, respondeste apenas que mudar o número ou a morada não muda quem eu sou e que por isso mesmo seria sempre fácil encontrar-me. Não toquei mais no assunto, eu mesma sabia que a previsibilidade que me caracterizava seria para sempre o meu ponto fraco. Disseste que não me estavas a ligar para reviver o passado, nem tão pouco para remexer no que já estava revirado, querias apenas dizer que também tinhas pedido neve a um qualquer Deus para me aquecer o coração nesta fria noite de Natal. Pediste-me que fosse à janela e disseste com ternura: Vês a neve a cair? É o meu presente de Natal para ti. Amanhã o sol voltará a raiar e a neve vai derreter, pensei. A felicidade não dura para sempre. Quem me dera que nevasse todo o ano. Vamos fazer um boneco de neve, disse-te, antes que o sol comece a raiar e eu tenha que voltar à realidade... Não te julgo, disses-te, afinal de contas, é muito mais fácil ter do nosso lado o sol que raia a maior parte do ano. Mas contigo foi sempre assim, sempre quiseste o que não podias ter. Mas quero que saibas que fiquei contente por ti quando soube que tinhas deixado de esperar que nevasse.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As tuas escolhas erradas

Hoje usei o vestido que me ofereceste. Peguei nele e disse a mim mesma, vou usar a herança que me deixou aquele traste! Não é um vestido bonito, é apagado, não me favorece e em nada dá nas vistas a não ser em evidenciar o teu mau gosto. Mas mesmo assim quis usá-lo. Confesso que fui apenas passeá-lo até ao café da minha rua. O teu mau gosto não merece ser evidenciado para além do quarteirão de minha casa. Olhava para ele com atenção e percebia que não podias jamais conhecer a tua namorada, caso contrário nunca me terias oferecido um vestido que eu ia jurar que tinha sido comprado a pensar na tua mãe. Nada contra a tua mãe, mas não estou sequer perto dos quarenta, entendes? O vestido é a prova de que nunca soubeste quem eu era. Se nunca soubeste quem eu era nunca me amaste pelo que eu sou. O problema não foi só o vestido. Nunca preferi os restaurantes caros, sempre preferi poder mandar uma gargalhada sem ter que pensar na postura. Mas optas-te sempre por reservar o melhor restaurante. O que em mim te fez pensar que era isso que eu queria? O que em mim te fez pensar que eu gostava de cheiros intensos quando todos os meus perfumes eram suaves? Nunca fui essa mulher com quem tu acreditas ter namorado. Complicaste o que sempre foi simples. Des-te muito quando sempre me contentei com pouco. Namoraste com uma mulher que nunca fui, nem quis ser. Talvez por isso tenhas desistido de mim. Apaixonaste-te por uma mulher alegre, de gargalhadas puras e cheiro suave. E deste por ti a tentar agradar a uma mulher apagada, de postura intocável e perfume intenso. E enquanto passeio o vestido de regresso a casa, sinto-me leve, finalmente leve. Não fui eu quem tu decidiste abandonar, foi a essa mulher que um dia alguém te convenceu que eu era. Eu sei quem és, talvez por isso ainda te ame. Depois de tudo e apesar de tudo. E esse tudo nunca foram as tuas escolhas erradas com os vestidos, os restaurantes ou os perfumes.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ele não sabe esquecer e eu também não

Ele vai-te dizer que não sabe dançar, vai-se encostar ao balcão e deixar que a pista seja toda tua. E talvez tu até nem queiras. Vais insistir para que ele dance, e ele vai-te dizer vezes sem conta que os seus pés mais não servem do que para mandar uns chutos numa bola. Porque ele não te vai dizer que aprendeu a dançar comigo, para que tu não percebas que os seus passos ainda hoje só se coordenam com os meus. Ele vai-te dizer que não sabe cozinhar, não para te levar a jantar fora, mas porque ele nunca te vai dizer que o único prato que aprendeu a cozinhar é o meu prato preferido. Ele vai-te dizer que não sabe nada sobre moda e que tudo o que compras te fica bem, não por amor, mas porque não quer que percebas que ainda hoje só pensa no que fica melhor com os meus cabelos pretos, esquecendo-se que os teus cabelos são tão claros que o rosa salmão nunca te ficaria bem. Ele não te vai dizer nada que tu não queiras ouvir. Não te vai falar de mim. Não te vai contar que aprendeu a dançar por ciúmes, ciúmes dos olhares quando era eu a rainha da pista. Não te vai contar que aprendeu a cozinhar o meu prato preferido por amor, para que eu me sentisse orgulhosa por ver aquilo de que ele era capaz. Não te vai contar que não é cego e que até me sabia dizer qual a cor que mais me favorecia. Por carinho, um carinho por ti que jamais o deixará dizer-te que olha para ti e não consegue ver quem és. Ele sabe quem eu sou. Mas nega e negará quantas vezes for preciso. Porque ele quer esquecer que um dia aprendeu a dançar comigo, quer esquecer que aprendeu a cozinhar por mim e que ainda hoje sabe quem sou. Não o culpo, porque também eu ainda tento esquecer que foi com ele que aprendi a amar.