sexta-feira, 27 de março de 2015

O circo

Aquele mundo sempre a fascinara. Era o mundo que tinha povoado os seus sonhos de infância. As cores faziam-na lembrar a felicidade e ela sempre acreditara que a partir do momento que ali entrassem, as pessoas só podiam ser felizes. Pelo menos enquanto durasse aquele espetáculo. Era um espetáculo de magia e cor, sorrisos e ternura. Se houvesse felicidade, ela só poderia estar ali, dentro daquela tenda velha, desgastada pela chuva e pelos anos de estrada, e ainda assim tão viva. Foi por isso que naquele dia foi ao circo. Ela, mais do que ninguém, precisava daquela felicidade, de se sentir viva. Já à muito que os tons cinza da vida lhe cobriam os olhos. Foi sozinha, dizem por aí que já não há tempo nem dinheiro para estas coisas. Achava injusto, não há dinheiro que pague esta arte, tão pouco valorizada. Logo ali, que as pessoas eram tão felizes. Entrou na tenda e deixou-se levar pelo espetáculo. Sorria muito, bateu palmas, foi feliz. Foi durante a estadia do circo na cidade que ela o conheceu. Ele, o palhaço. Ele contou-lhe os encantos da sua profissão, o quanto brilham os seus olhos quando faz rir uma plateia. Contou-lhe também os seus maiores segredos, também ele tinha dias maus. Daqueles dias em que a vida nos cansa, nos deita a baixo, tal como qualquer outra pessoa. Mas o seu coração era tão grande que até mesmo nos dias em que chorava por dentro, conseguia fazer os outros rir. Ele fazia-a rir, não pelo seu lado cómico, mas pela felicidade que ela sentia quando estava com ele. Mas ele, melhor do que qualquer outra pessoa, sabia que não se podia apaixonar por aquela mulher. Em breve o circo partia e uma das regras de vida de qualquer artista de estrada é mesmo essa, não se apaixonar. Ele é uma pessoa livre, criar raízes é um veneno na sua profissão. Mas nestas coisas do amor, nunca a razão falou mais alto. E o provável aconteceu, apaixonaram-se. Amaram-se aquela e todas as noites, sempre em contra-relógio. O dia da despedida estava marcado e cada minuto se fazia contar. No dia em que o circo abandonaria a cidade, ela foi ter com ele: -Leva-me contigo - disse ela. -Não posso fazer isso. -Eu sei que não era isto que estava planeado, ambos sabíamos que este dia ia chegar, mas eu quero ir contigo. Quero ser feliz, livre como tu, como os ilusionistas, os trapezistas, os domadores de leões e até a senhora da bilheteira. -Não és mulher para esta vida. Este não é o teu mundo. Nunca quererias dar esse desgosto ao teu pai. -O meu pai quer que eu seja feliz. -Com um palhaço? Que de casa te dá um camião, que te faz andar pelo mundo fora sem quatro paredes que te abriguem? Que não será ninguém para te proteger das dificuldades que passamos quando montamos a tenda e ninguém compra bilhetes? -Eu quero viver nesse mundo, ao teu lado. A felicidade descobri-a contigo. A liberdade que eu preciso vou encontra-la a teu lado, estrada fora. -Não é um palhaço que o teu pai quer para a sua filha. Ele quer um homem engravatado, com um diploma na mala e um Mercedes oferecido pelos pais. Eu não sou ninguém. -Não digas isso! Tu foste a única pessoa que me fez sentir viva, a única pessoa por quem me consegui apaixonar desde o primeiro instante. Tu fazes-me feliz. Eu não sou isto, não sou estas roupas caras que visto, o curso universitário que estou a tirar, as férias que passo na praia ou o carro que tenho à porta. A minha felicidade vou encontrá-la todas as manhãs quando acordar ao teu lado, quando montar a tenda para fazer mais pessoas felizes, quando conhecer o mundo, o verdadeiro mundo. -Não te posso fazer isto, não tenho nada para te oferecer. -Tu sabes que eu não preciso de nada, ao longo destas duas semanas tu percebeste que esta vida que tenho me abafa, me sufoca. Eu preciso de liberdade, de viver um dia de cada vez, sem planos nem obrigações sociais. Apenas viver, com amor. -Um dia vais querer ter filhos e não vai ser esta a vida que lhes vais querer dar. Vais querer ter uma casa onde eles possam ter um quarto de brinquedos, um jardim grande, que sejam estudados. Tal como os teus pais quiseram para ti. Esse é o teu mundo. -Uma família constrói-se com amor e um diploma universitário não fará dos meus filhos pessoas mais ou menos íntegras. Eu amo-te e quero que me leves desta cidade, contigo. -E se um dia não tivermos que comer? Vais amar-me mesmo assim? -Vou amar-te todos os dias da minha vida. No mundo onde eu vivo as pessoas não são felizes. Presas à vida que a sociedade e a família lhes impõe. -No dia em que entraste no circo eu reparei em ti, és uma senhora vistosa. As roupas, as joias, a postura elegante. Mas vi a tristeza no teu olhar. Os teus olhos tão vazios. Nunca percebi como se pode ter tudo e não ser feliz. -Precisamente por se ter tudo é que não se é feliz. Estamos presos a isso, impedidos de viver. Por isso mesmo, nunca te pediria que ficasses, nem que aceitasses este meu mundo. Quero que sejas feliz. Mas quero que sejas feliz comigo. Os dois, por essa estrada fora. Ele olhou para ela, lágrimas escorriam dos seus olhos, olhava para ela completamente apaixonado. Ela era diferente das pessoas do seu mundo. E disso, ele tinha a certeza. Foi então que com todo o amor que lhe tinha, a olhou nos olhos e lhe disse: -És a mais bonita mulher que já alguma vez vi. E nunca pensei encontrar alguém tão fascinante por fora como por dentro. Todas as noites te amei como se fosse a última vez e tenho o teu cheiro em cada entranha do meu corpo. Nunca pensei que se pudesse amar assim alguém que não se conhece. Mas amo-te mais do que podes imaginar e não serei capaz de te mostrar o lado triste que tem o circo. Aqueles dias em que passamos fome, em que ninguém vem assistir ao espetáculo, em que uma tempestade nos destrói a tenda ou o dinheiro não chega para o gasóleo. Guarda o bom, o fantástico, as cores, os sorrisos. É um dia, quando casares com um desses engravatados de diploma na mala, guarda o sorriso do teu pai e o meu. Que sorrirei por ti, mesmo que esteja do outro lado do mundo. Porque terás a vida que mereces. Deixa o espírito livre, por mais que o corpo esteja preso nesse mundo. Tu saberás ser feliz, eu sei que sim. E o circo partiu, deixando para trás o corpo preso de uma mulher cujo coração estava naquele camião cintilante.
Não estava à tua espera. Finalmente me havia conformado com o que aos meus olhos se havia tornado uma certeza, homem nenhum consegue amar uma mulher assim. "Homens precisam de se sentir amados", comentava uma amiga de longa data numa das nossas muitas conversas de café. "A tua segurança em ti mesma, a liberdade que tanto prezas, o facto de quereres ser tu a controlar tudo na tua vida, traz insegurança ao homem que estiver a teu lado." Comecei a pensar nisso e nas particularidades que faziam de mim uma mulher difícil. Sempre me considerei uma mulher simples de perceber, mas entendia agora que essa minha simplicidade causava todo um mapa complexo aos olhos de qualquer homem. Não tinha muito orgulho no meu passado, não fui a mulher que um dia quis ser. E foi por isso que me direcionei em sentido contrário e comecei a amar-me mais a cada dia que passa. Troquei a rota, inverti posições e prioridades. Comecei a ser a minha prioridade sempre que acordo de manhã e repito a mesma rotina. Tomo as vitaminas, calço as sapatilhas e vou correr, o dia segue, tenho uma lista de coisas a fazer e não aceito que nenhuma delas se faça esperar. No meu dia tenho que encaixar tempo para os amigos, seja para um café ou uma conversa nas redes sociais. Tenho que ter tempo para a família, o meu bem mais precioso. Tenho que tomar conta da minha vida, dar uma ajeitadela na vida dos outros, visitar os sites que sigo na internet e ainda arranjar um tempo para ir à aula de pilates ao fim do dia. No meio destes dias consigo planear uma viagem, adoro passear em boa companhia, mas sei apreciar a minha, por isso às vezes saio por aí, comigo mesma. E sou feliz. Não tenho paciência para justificações desnecessárias e contínuas, pormenores aborrecidos e perfeitamente descartáveis sobre o quotidiano. Acho que isso muito contribui para que o casal chegue ao ponto E, E de enfadonho, em que já conta tudo e mais alguma coisa. Tudo o que não interessa e mais alguma coisa desnecessária que ainda se lembra de acrescentar. No entanto, gosto e reconheço a importância de uma conversa agradável ao fim do dia em que conto o que andei a fazer, o que conheci, aquilo que aprendi e o dinheiro que poupei para uma próxima viagem. E o melhor disto tudo, é que ele entende-me. Não cobra muito de mim. Habituou-se à complexidade de mulher que escolheu amar. No início pensei que se tratava apenas de um fascínio pela mulher independente e que ainda assim tem tempo para fazer a sua sobremesa preferida. Depois percebi que não, ele gosta de mim e é por isso que me dá asas para voar. Não me prende mas nunca me falha. Não o prendo mas nunca lhe falhei. Diz ele que nunca pensou aceitar uma mulher assim, digo eu que nunca pensei encontrar alguém tão seguro de si ao ponto de me deixar ser eu mesma. Em troca dou-lhe o melhor de mim e aceito-o como ele é, tal como ele faz comigo. Não invadimos o espaço um do outro, mas sabemos que o espaço de um é o espaço de outro. Não nos preocupamos em ser um modelo de casal, mas olhamos para nós com orgulho. Ele dá-me liberdade para ser feliz, ama-me sem me roubar um lado que não volta mais, a minha juventude. Que outro homem me poderia amar assim? Que outro homem aceitaria uma mulher assim? Acho que amar é isto mesmo, aceitar a mulher que temos ao nosso lado, estimula-la, ter orgulho nela, compreender as suas necessidades, apoiá-la. E nisso, eu sinto-me a mulher mais amada deste mundo. Agora vou dormir, que amanhã a vida segue e ao fim do dia ainda tenho que ter tempo para te contar o que aprendi enquanto adormeço livre mas segura nos teus braços.